Saudade daquilo que não vivemos…
Em linhas gerais, achamos as alterações propostas nos decretos como negativa para as teses das empresas de saneamento sob nossa cobertura (Sabesp, Sanepar e Copasa). Em nossa leitura, sob os termos anteriormente aprovados no ano de 2020, o setor deveria ser tomado por uma onda de privatizações à medida que: I) as estatais não alcançassem as metas de universalização dos serviços de água e esgoto propostas, momento este em que a áreas de concessões teriam que ser licitadas, II) ausência de capacidade econômico-financeira de acordo com métricas financeiras pré-estabelecidas por parte das estatais e III) alta competição resultando em prêmios muito expressivos dos leilões recentes, fazendo com que os governadores reconsiderassem a manutenção de uma estatal ineficiente e mal gerida sob seu comando. Ou seja, os decretos publicados fazem com que tais empresas do setor permaneçam do jeito que estão, com todas as suas limitações e deficiências (baixo crescimento, estrutura de custos ineficiente, ingerência política, distantes da universalização, etc) e que mereçam continuar negociando a múltiplos depreciados em relação ao seu “primo rico”: o setor de energia elétrica. Com pouco mais de 20 anos de um marco regulatório sólido e bem estabelecido, o setor elétrico alcançou quase duas dezenas de empresas com capital aberto nos seus diversos segmentos de atuação, com grande track record de crescimento, atendimento, qualidade na prestação do serviço, geração de valor, pagamento de dividendos e valuations mais interessantes se comparado com o setor de saneamento.
Em nossa leitura, os decretos publicados vão na direção oposta dos três pontos citados no parágrafo anterior, o que deve reduzir o apetite de investidores interessados em atuar no setor via novos leilões de privatização (como a Equatorial/EQTL3, por exemplo) e é negativa por trazer maiores incertezas sob a estabilidade regulatória do setor, o que fatalmente reduziriam os prêmios/valuations alcançados nos leilões, o que deve reduzir o eventual interesse de governadores em vender seus ativos de saneamento. Por último, por se tratar de uma alteração via decreto do poder executivo e não via aprovação de lei, imaginamos (e aqui, longe de nós sermos especialistas nessa área) que no futuro as alterações possam ser apreciadas pelo legislativo, barradas via ações diretas de inconstitucionalidade ou até mesmo suspensas/alteradas por presidentes em mandatos futuros.
O mero efeito da possibilidade de alteração no marco do saneamento já trouxe impacto no leilão do setor. Citamos a recente privatização da Corsan (Dezembro/22), onde a mera possibilidade de alteração nos termos do marco já fez com que o leilão tivesse apenas uma oferta um único consórcio interessado com prêmio irrisório em relação ao preço-mínimo estabelecido. Na época, escrevemos um relatório sobre as expectativas do leilão (para maiores detalhes, clique aqui) e sobre a frustração com o resultado (para maiores detalhes, clique aqui).
Dias de um Futuro Esquecido
De acordo com os decretos publicados (Decreto Nº11.467 de Abril de 2023 e Decreto Nº11.466 de 5 de Abril de 2023), observamos alguns pontos que vão de encontro ao que era estabelecido no Marco do Saneamento (Lei Nº11.455/2007 com nova redação trazida pela Lei Nº14.026/2020). Como principais alterações, citamos:
I) Prestação dos serviços de Água e Esgoto pelas empresas estatais sem necessidade de licitação e manutenção dos atuais contratos de programa.
Achamos esse ponto um dos mais alarmantes a medida que a prestadora passa a operar a região sem necessariamente um contrato de concessão, ou seja, dentro de um regime precário de prestação de serviço. Em nossa leitura, tal renovação deverá acontercer nos termos antecedentes a lei aprovada em 2020, que acontecia independentemente da qualidade ou cobertura dos serviços de água e esgoto. Vale lembrar que o Novo Marco do Saneamento estabeleceu a obrigação dos prestadores de serviço em alcançar pelo menos 99% da população com cobertura de água e 90% com cobertura de esgoto. Ou seja, nos termos do decreto, mesmo quem não alcançasse tais metas não poderiam continuar prestando o serviço. Vale lembrar que as regiões mais sensíveis à cobertura do serviço ficam exatamente nas regiões socioeconômicas em situação econômica mais frágeis, como no Norte e Nordeste.
II) Extensão do prazo (para dezembro 2025 vs Dezembro/21 anteriormente) para comprovação de solidez econômica-financeira mínima para atendimento dos serviços.
Se por um lado as empresas de capital aberto possuem balanços sólidos, margem operacionais positivas e orgãos reguladores dos seus serviços em seus estados, muitas empresas apresentam exatamente o contrário disso. Ou seja, empresas descapitalizadas para fazer frente aos investimentos necessários terão uma extensão no seu prazo e continuarão tocando seus negócios normalmente.
III) Limite da subdelegação de prestaçao de serviço de até 25%, exceto para parcerias público-privadas.
Aparentemente, existe o privilégio para empresas públicas explorarem PPPs para além do limite de 25%. Empresas privadas não poderão ultrapassar o limite de subdelegação do seu contrato em até 25%. Não entendemos o motivo de tal privilégio ficar apenas em empresas estatais.
IV) Atribuições da ANA (Agência Nacional de Águas): Autonomia mantida, com edição de normas de referência sobre o assunto. Entretanto, o Ministério das Cidades deve estabelecer políticas públicas para sociedade.
A harmonização de normas de referência para o setor de água e esgoto atribuidos a um orgão regulador forte, independente, tecnicamente capaz e longe da influência política local era um dos pontos mais fortes estabelecidos pelo Novo Marco do Saneamento – vale lembrar que, históricamente, cada estado tem seu orgão regulador específico para realizar a regulação técnica e econômica (tarifas) dos serviços prestados (isso nos estados que ao menos tinham um orgão como esse… outros sequer possuem um). A manutenção da ANA como regulador do setor é positiva, mas o conflito de que pode gerar o estabelecimento de politicas para o setor de um Ministério (que necessariamente é controlado por indicações do presidente) gera um grande ruído aquilo que foi anteriormente estabelecido.
V) Alocação de Recursos Públicos Federais da União ou operados por orgãos e entidades da União
A idéia do uso de recursos federais para financiamento do serviço pode parecer interessante, mas na realidade é um dos grandes pontos fracos do decreto no que diz respeito a expansão da cobertura dos serviços de água e esgoto a medida que o próprio governo federal possui orçamento apertado, resultando em expressivo subinvestimento e baixa cobertura dos serviços ao longo dos anos. Considerando