Prestes a completar um mês, a guerra no leste europeu dá sinais de que será mais duradoura do que o antecipado. Em especial, as sanções impostas à Rússia como retaliação ao início do conflito armado, dificilmente serão revertidas no curto prazo. Os custos têm se mostrado significativamente elevados. A crise humanitária gerada pelos combates que, em grande parte, ocorrem em centros urbanos, já está marcada pela perda de vidas e pelo grande fluxo migratório de ucranianos para outros países europeus. Estima-se que o número de refugiados já tenha alcançado o patamar de 2 milhões e especialistas apontam para a possibilidade de que esta marca possa alcançar 10 milhões a depender da duração do conflito.
Por outro lado, em resposta à invasão da Ucrânia, os países do ocidente, sob a liderança dos Estados Unidos, adotaram uma série de retaliações econômicas, visando excluir a Rússia do sistema financeiro e do mercado de trocas global. Um número bastante abrangente de sansões está sendo adotado, como pressão para que empresas interrompam voluntariamente suas atividades comerciais com suas contrapartes russas e exclusão dos bancos do país ao sistema SWIFT. Ademais, houve o confisco das reservas cambiais do governo russo, denominadas em dólares, ouro e títulos do tesouro americano, custodiadas em outros bancos centrais do mundo ocidental. Neste artigo, nosso objetivo é discutir as implicações de longo prazo deste congelamento de reservas cambiais.
O dólar, assim como as demais moedas fiduciárias, representa uma dívida soberana entre um determinado governo e o ente que se dispôs a reter a moeda em seu portfólio. Se, por alguma razão, o governo emitente da moeda fiduciária se recusa a honrar esta dívida, como no caso de proibir o acesso aos recursos depositados em bancos sob sua jurisdição, a credibilidade desta moeda é, claramente, afetada. Nossa avaliação é que este movimento de congelamento das reservas em dólares, em ouro e em títulos do tesouro americano custodiadas nos bancos do mundo ocidental será responsável por uma quebra estrutural na confiabilidade das moedas fiduciárias, principalmente do dólar.
Esta será uma consequência de longo prazo, visto que não há alternativas de curto prazo, além do que alterações no arcabouço de meios de pagamento global ocorrem de maneira lenta. Acreditamos que os principais impactos sobre o dólar sejam, em primeiro lugar, a perda do valor destas reservas, o que reduzirá o incentivo de utilizar esta moeda como reserva cambial dos países. Dado que há o risco de que em um momento de necessidade o país possa ficar incapacitado de usar suas reservas, naturalmente estas perdem valor e atratividade.
O resultado é que os governos buscarão diversificar suas reservas para reduzir sua exposição a uma única moeda fiduciária, visto que estes ativos se mostraram menos líquidos e seguros do que o antecipado. Destacamos aqui o fato de que a China possui mais de 3 trilhões de reservas em dólares e títulos do tesouro americano, sendo o principal credor da dívida americana. Diante da polarização que vem se materializando no atual conflito, acreditamos que o Yuan tende a se fortalecer no médio/longo prazo devido ao importante papel que a China exerce no mercado global.
Outro ativo que tende a se beneficiar a longo prazo com esta fragilização da credibilidade das moedas fiduciárias são as criptomoedas, devido a seu caráter descentralizado. Exatamente por esta razão, não são afetados por sanções que visam congelamento de recursos. Além disso, as criptomoedas também atuam como meio de transferência internacional, podendo mitigar os efeitos de sanções que buscam a exclusão de determinado ente do sistema global de meios de pagamento.
Reflexo disso pôde ser observado no movimento nos preços das criptomoedas no dia do início do conflito. Por um lado, o volume negociado por Bitcoin e a UAH (moeda ucraniana) disparou 4,2x a mais em relação aos dias que antecederam o conflito. Na mesma direção, o volume negociado entre Bitcoin e o Rublo foi 4,5x maior do que a média dos dias anteriores.
Entretanto, a elevada volatilidade das criptomoedas põe em cheque o seu papel como reserva de valor no curto prazo, limitando a utilização das mesmas, principalmente, como reservas internacionais para os países. Porém, acreditamos que devido à guerra e as sanções aplicadas à Rússia, que fragilizaram o papel das moedas fiduciárias, esta é uma discussão que estará na mesa no longo prazo.
Nossa avaliação é, portanto, que o conflito e o consequente confisco das reservas internacionais russas são importantes eventos que, no longo prazo, mudarão a visão atual sobre as moedas fiduciárias. A solução para esta perda de credibilidade ainda é incerta e apenas ocorrerá no longo prazo, seja por meio da diversificação ou do uso de moedas descentralizadas. No entanto, temos uma única certeza: o papel do dólar dificilmente será o mesmo.