As ações da Americanas desabaram no mercado no pregão dessa quinta-feira (12), após o anúncio de inconsistência contábil de R$ 20 bilhões no balanço da companhia. Falamos sobre esse evento em nosso último texto ontem (confira aqui).
A nossa visão para AMER3 continua negativa e reiteramos a recomendação de VENDER. Salientamos que o preço-alvo de R$9,40 23E estará sujeito a novas revisões (mesmo após o nosso corte realizado nessa semana) tão logo tivermos acesso a mais informações sobre o ocorrido.
O “buraco” que a Americanas entrou não parece ser um caso isolado, mas sim estrutural. A inconsistência contábil, que foi estimada em R$20 bilhões na companhia em questão (dados não auditados), pode ser um problema que se arrasta pelo setor de varejo desde a década de 1990, devido à falta de padronização (lê-se “contabilidade criativa” ou “livre arbítrio”) em interpretar e reportar o “risco sacado” dentro do balanço. Ou seja, outras varejistas fazem operações de risco sacado (isso é fato) e pode ser (é apenas uma hipótese, nesse momento) que o erro encontrado na Americanas na forma de reportar a informação dentro do passivo ocorra em outras empresas do setor.
Antes de seguir adiante, permita-nos explicar o que significa o risco sacado.
Em linhas gerais, o Risco Sacado é um processo de antecipação de recebíveis pela modalidade de cessão de crédito.
Através de uma triangulação de operação, a varejista inclui um banco na operação, de modo que ele antecipe esse pagamento ao fornecedor com um deságio. É uma operação comum para o funcionamento do segmento varejista. Todos os envolvidos ganham, o banco, a varejista e o fornecedor.
Existem duas razões principais em se fazer o risco sacado e cada um delas remete a um tratamento diferente na contabilidade das empresas:
(i) Fornecedor deseja antecipar seus recebíveis e a varejista possui caixa para pagar na data acordada;
(ii) Fornecedor não deseja antecipar seus recebíveis e a varejista não possui caixa pra pagar na data acordada, precisando de uma postergação de prazos.
Tipo I : Na situação (i) a varejista usa uma instituição financeira (banco) para intermediar a operação. Em um exemplo hipotético, onde a varejista assumiu o compromisso de pagar um fornecedor um valor de R$1.000 daqui a 180 dias, o banco antecipa o valor com um deságio de R$100 para esse fornecedor, ou seja, R$900 em 90 dias.
Até o momento do fechamento da operação de Risco Sacado com o banco, a varejista declarava em seu passivo, na conta de “Fornecedores”, a obrigação de pagar os R$1.000. Ainda após a operação, nessa situação (i) o valor na conta de fornecedores não sofreria redução. O fornecedor iria arcar com o custo da operação, que é o spread bancário ao deixar de receber os R$100. Ou seja, o fornecedor no final recebe R$900 do banco em 90 dias ao invés de R$1.000 em 180 dias da varejista. Já a varejista, paga R$1.000 na data acorda em 180 dias pro banco. O banco ganha os R$100 que deixou de ser pago ao fornecedor.
Nessa situação a varejista não possui nenhuma alteração em suas demonstrações contábeis e não incorre em custos adicionais na transação, ela apenas muda o credor, ou seja, passa a dever ao banco o mesmo valor no mesmo prazo ao invés do fornecedor. Porém, as normas contábeis mostram o entendimento que diante dessa situação (i) o Risco Sacado continua sendo uma operação – fim para pagamento de compromissos a fornecedores, não mudando a natureza da operação, de forma que não há movimentação da conta de “Fornecedores” para a de “Empréstimos”.
Inclusive, vale mencionar que na situação (i) a própria varejista pode acordar com o banco o recebimento de uma comissão, ou seja, parte dos R$100 que formaria o spread que a instituição financeira receberia seria dividido em alguma proporção também para a varejista, declarado na receita financeira dentro da DRE, de forma que não há nenhum malefício para a varejista, só vantagens.
Tipo II: Já a situação (ii) é bem diferente para varejista. O banco também intermedia a operação de Risco Sacado, porém quem necessita de modificações no fluxo de pagamento é a varejista não o fornecedor. Utilizando o mesmo exemplo hipotético anterior, a varejista assumiu o compromisso de pagar os R$1.000 em 180 dias e reportou esse compromisso dentro da conta de “Fornecedores” no passivo do Balanço Patrimonial (BP).
Porém, no decorrer desse tempo, a varejista constatou que não conseguiria honrar com o pagamento no prazo combinado com o fornecedor e então aciona o banco para realizar a operação de Risco Sacado. Digamos, a luz do exemplo que criamos, a varejista almeje renegociar o prazo de pagamento e estica-lo para 270 dias, ganhando 90 dias adicionais de prazo.
Após a operação ser concretizada, a varejista deveria criar uma redução na conta de “Fornecedores” e abater o valor de R$1.000 e, ao mesmo tempo, adicionar o mesmo valor na conta de “Empréstimos e Financiamentos”, uma vez que justamente pelo benefício gerado para ela de alongar o pagamento em 90 dias ela terá que pagar juros pela operação. Tão logo, há a incidência de juros e as normas contábeis entendem que, diante dessa situação (ii), o Risco Sacado deixa de ser uma operação fim para pagamento de fornecedores e passa a ser uma operação de financiamento bancário, mediado por uma instituição financeira, de forma que deveria haver uma transferência de valores entre duas contas de Passivo no BP: o valor sai da conta de “Fornecedores” e entra na conta de “Empréstimos e Financiamentos”.
Ainda nessa situação, a varejista estica o seu prazo de pagamento em 90 dias (chegando a 270 dias) e incorre em juros de R$100 por esse benefício. Já o banco assume o compromisso de pagar o fornecedor na data correta, ou seja, 180 dias e recebe R$100 de spread pela operação. O fornecedor, por sua vez, não tem seu cronograma de recebimentos alterado, porém, ao invés de receber os R$1.000 da varejista recebe o mesmo valor do banco.
A contabilidade da varejista, nessa situação ficaria da seguinte forma: o mesmo valor de R$1.000 seria adicionado em “Empréstimos e Financiamentos” e reduzido na conta de “Fornecedores”, porém, a companhia deveria também circular os R$100 da diferença da postergação do prazo na DRE mediante aos 90 dias via despesas financeiras, uma vez que esse valor é caracterizado como juros. Quando chegar os 270 dias e o pagamento dos R$1.000 for realizado ao banco esse valor tramitaria pela DRE via Custo do Produto Vendido (CPV).
O spread que o banco ganha na operação são os R$100, o custo total da varejista passa a ser R$1.100 (CPV de R$1.000 + Despesa financeira de R$100). Os R$100 saem no PL via conta de “Lucro/Prejuízo Acumulado” do período, em contrapartida, também sai do caixa, realizando o net no BP. Já os R$1.000 saem também no “Lucro/Prejuízo Acumulado” do período e a contraparte é pela diferença de saldos no capital de giro, uma vez que é baixado o saldo na conta de “Empréstimos e Financiamentos” quando ocorrer o vencimento em 270 dias, também realizando o net no BP. Dessa forma, a DRE e BP funcionam juntas de forma a garantir o efeito contábil da tramitação da operação e o efeito caixa para a varejista.
Nessa situação (ii) deveria ocorrer necessariamente uma movimentação de contas entre passivos no BP da companhia e foi justamente nessa movimentação que as inconsistências apontadas no fato relevante surgiram.
Nossa visão e recomendação
A nossa análise é de que a Americanas realizou a conta redutora na linha de “Fornecedores” dos valores nas operações de Risco Sacado que se enquadraram na situação (ii), porém não repassou em sua integralidade os valores para a linha de “Empréstimos e Financiamentos”. A consequência disso seria um subdimensionamento do endividamento total da companhia.
Nossa hipótese é de que uma das razões que teriam levado a companhia a realizar esse erro na classificação de contas seria reportar uma alavancagem financeira menor do que o real. Esperamos ver uma reclassificação contábil auditada ao longo dos próximos meses, porém, acreditamos que essas reclassificações ocorram após a divulgação do 4T22 (após 29 de março).
Sérgio Rial (ex CEO Americanas), realizou nesta quinta-feira, no dia seguinte ao ocorrido, uma conferência com analistas. De acordo com a posição de Rial, essa contabilidade incorreta pode estar acontecendo há mais ou menos 7~10 anos. Ainda, segundo o executivo, e conforme estimativas não auditadas, o rombo de R$20 bilhões que deveriam ser classificadas como dívida, seria o “melhor dos cenários”, uma vez que os lançamentos podem ser ainda maiores.
Porém, nosso entendimento até o momento é de que conta que Rial anunciou na magnitude de R$20 bilhões seriam de um fluxo de operações de Risco Sacado tipo (ii) realizadas pela Americanas ao longo de diversos anos e, portanto, não constituem hoje o saldo final que estaria fora da linha de “Empréstimos e Financiamentos”. Em outras palavras, o valor que deveria ser realocado e que aumentaria o endividamento no balanço atual da Americanas representa um % desses possíveis R$20 bilhões e não a sua integralidade. Isso porquê a Companhia, segundo o pronunciamento de Rial, não teria deixado de quitar seus compromissos ao longo dos anos, não havendo então saldo off-balance e sim um montante classificado em outras contas do balanço que não a de “Empréstimos e Financiamentos”.
Diante do que foi dito na conferência, é necessário esclarecer, que a companhia não precisará reconhecer um saldo próximo de R$20 bilhões no balanço, ou seja a Americanas não passará a dever +R$20 bilhões a partir de agora. O tamanho do aumento do endividamento ainda será apurado, mas realizar a subtração desse montante em sua integralidade do Enterprise Value (Valor da empresa) está equivocado, em nossa visão.
Vemos que a reclassificação contábil deve aumentar a alavancagem da companhia, que já está em 3,8x Dívida Liq./EBITDA (Ex. IFRS-16), considerada por nós e pelo consenso como patamares elevados. Dito isso, vemos uma possibilidade alta do acionamento das dívidas que possuem covenants, que correspondem ~8% do total (~R$1,7b Est. Genial). Em uma situação como esta, a companhia se veria obrigada a quitar a dívida “na cabeça” para manter a liquidez. Esse evento então muito provavelmente acionaria a necessidade de um aporte de capital de seus acionistas de referência, uma vez que a posição de R$8,6b de caixa da Americanas não suportaria uma perda de ~R$1,7b, em virtude de outras compromissos que a companhia precisa quitar para manter sua operações em andamento.
O cenário continua nebuloso e ainda não existem dados oficiais (e auditados) para fazermos um cálculo ainda mais apurado do impacto dessa reclassificação. A nossa visão para AMER3 continua negativa e reiteramos a recomendação de VENDER, não só pelo que está por vir em termos de aumento de endividamento e subsequente piora de seus resultados em um cenário de juros altos, mas também pela saída de Sergio Rial do posto de comando da Americanas, um nome que nos passava muita credibilidade para a execução dos planos de expansão da companhia. Sem Rial, o case não só perdeu o brilho, mas a maneira como foi reportado o fato relevante, valores mencionados e longevidade das inconsistências, minam a confiança na governança corporativa da Americanas daqui pra frente.
Salientamos que o preço-alvo de R$9,40 23E estará sujeito a novas revisões (mesmo após o nosso corte realizado nessa semana) tão logo tivermos acesso a mais informações sobre o ocorrido.